Estes trabalhos foram apresentados na exposição "Colcha de Retalhos e Outras Lembranças", realizada em parceria com Josemar Antonio, no Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira, em Feira de Santana/BA, no período de abril/maio-2008.
Colcha de retalhos e outras lembranças
Você já se perguntou o que vê diariamente? Que imagens fazem parte efetivamente do seu cotidiano? Não me refiro às imagens eletrônicas da TV, do cinema, do vídeo, do computador que saturam nosso dia a dia, estabelecem ritmos comportamentais e até condicionam nossa sensibilidade de modo significativo. Porém, pense no seu ir e vir corriqueiro, nas suas rotinas de trabalho e de atividades.
Essa é a matéria prima desta mostra, os percursos comuns, através de registros relativamente simples mediante o uso de câmaras digitais. Partindo de premissas acessíveis à maioria das pessoas, os artistas propõem um olhar singular do qual emerge uma poética e uma estética do cotidiano. Os trabalhos de Josemar Antonio e Davi Bernardo emergem num território lingüístico híbrido que dialoga com o registro visual documental, um certo caráter lúdico no uso da fotografia digital e uma associação quase onírica de imagens do dia a dia. Mas não é apenas isso: cada obra propõe também um debate sobre a qualidade de nossas rotinas.
O conjunto da mostra pode ser dividido em três eixos narrativos que ocupam espaços diferentes: a instalação "Colcha de Retalhos", os múltiplos da série "Dreams Work, Work Dreams" e os polípticos da série “Livros de História”.
A instalação "Colcha de Retalhos" compreende a apropriação de elementos e de imagens do comércio informal das ruas, discutindo a estética popular contida nas bancas de camelôs de várias cidades. A arrumação das feiras livres, a exposição de produtos nos quiosques, a organização dos exibidores de mercadorias seguem idéias de ordem e de estética próximas às das vitrines das lojas comerciais regulares. As bancas dos camelôs são verdadeiros construtos visuais que se compõem de valores de beleza, de funcionalidade e de estrutura que, ao mesmo tempo, apresentam especificidades culturais e revelam características comuns como manifestação típica das grandes cidades. Assim, "Colcha de retalhos" investiga as possibilidades poéticas do universo dos mercados populares num olhar composto por vários percursos dos artistas em diferentes feiras e mercados de diversas cidades.
Esse universo dos camelôs nos permite aproximar a uma questão crucial de nossa contemporaneidade: as relações estabelecidas a partir dos vínculos de trabalho. Todos temos um ideal de trabalho, inclusive o sonho de não ter que trabalhar. Nesse sentido, os múltiplos de "Dreams Work, Work Dreams" oferecem uma reflexão complexa a partir do percurso cotidiano de trabalho do artista. A obra avança na discussão da insanidade de certas rotinas cotidianas, dos valores de "qualidade de vida" atrelados às atividades laborais. Quantas horas passamos diariamente no trânsito? Como estamos usando nosso tempo? Na mesma estrada convivem "o bom salário", que anacronicamente obriga a percorrer dezenas de quilômetros até o local de trabalho, e os "trocados da sobrevivência" de beira de estrada, mediante a venda de todo tipo de mercadorias, inclusive sexo. As obras são constituídas de fotos digitais (sem qualquer edição ou manipulação) obtidas desde o carro em movimento. Por uma lado, esses registros "indiretos" nos colocam num plano de observação da estrada atípico e profundamente crítico da rotina laboral. Mas, por outro lado, oferecem imagens de uma estética que remete a lógicas de sonho (quando não de pesadelo) e, em conjunto, podem compor uma poética muito singular.
Essa possibilidade de ver o mundo através de "intermediários" é uma das questões que as obras de Davi abordam. Mediante fotos digitais das páginas de livros, propõe-se uma nova leitura da imagem e da palavra associadas numa mesma realidade na qual não mais se pode ler o texto completo nem a tela da qual se fala. Os fragmentos escolhidos fazem um certo ready-made dos livros de arte, que, por sua vez, compõem um novo olhar sobre obras de artistas bem conhecidos (Klimt, Hopper etc). Os múltiplos, em termos gerais, partem de uma re-proposição quase iconoclasta das obras de arte, que, ao mesmo tempo que nos aproximam de trabalhos geograficamente muito distantes, avançam numa outra possibilidade perceptiva de obras célebres pelo "desfocamento" da imagem. Nossas referências de arte ocidental estão construídas por intermediários, seja pelos livros, seja pela internet. Nesse sentido, a instalação discute a hiper-valorização da chamada inclusão digital, a retórica dos discursos de acessibilidade à informação, o crivo midiático permanente que estabelece um distanciamento dos objetos reais: você terá a ilusão de folhear um livro (uma experiência quase lúdica), mas em definitiva você não terá o livro em suas mãos e, muito menos, uma relação cognitiva corpo-a-corpo com a obra.
Desse modo, a essência das obras aqui apresentadas vai ao encontro de uma das grandes características da arte contemporânea: oferecer uma plataforma de referência para compreender a realidade, uma posição desde onde ver o mundo, uma possibilidade de leitura do que nos rodeia.
Alejandra Hernández Muñoz
Você já se perguntou o que vê diariamente? Que imagens fazem parte efetivamente do seu cotidiano? Não me refiro às imagens eletrônicas da TV, do cinema, do vídeo, do computador que saturam nosso dia a dia, estabelecem ritmos comportamentais e até condicionam nossa sensibilidade de modo significativo. Porém, pense no seu ir e vir corriqueiro, nas suas rotinas de trabalho e de atividades.
Essa é a matéria prima desta mostra, os percursos comuns, através de registros relativamente simples mediante o uso de câmaras digitais. Partindo de premissas acessíveis à maioria das pessoas, os artistas propõem um olhar singular do qual emerge uma poética e uma estética do cotidiano. Os trabalhos de Josemar Antonio e Davi Bernardo emergem num território lingüístico híbrido que dialoga com o registro visual documental, um certo caráter lúdico no uso da fotografia digital e uma associação quase onírica de imagens do dia a dia. Mas não é apenas isso: cada obra propõe também um debate sobre a qualidade de nossas rotinas.
O conjunto da mostra pode ser dividido em três eixos narrativos que ocupam espaços diferentes: a instalação "Colcha de Retalhos", os múltiplos da série "Dreams Work, Work Dreams" e os polípticos da série “Livros de História”.
A instalação "Colcha de Retalhos" compreende a apropriação de elementos e de imagens do comércio informal das ruas, discutindo a estética popular contida nas bancas de camelôs de várias cidades. A arrumação das feiras livres, a exposição de produtos nos quiosques, a organização dos exibidores de mercadorias seguem idéias de ordem e de estética próximas às das vitrines das lojas comerciais regulares. As bancas dos camelôs são verdadeiros construtos visuais que se compõem de valores de beleza, de funcionalidade e de estrutura que, ao mesmo tempo, apresentam especificidades culturais e revelam características comuns como manifestação típica das grandes cidades. Assim, "Colcha de retalhos" investiga as possibilidades poéticas do universo dos mercados populares num olhar composto por vários percursos dos artistas em diferentes feiras e mercados de diversas cidades.
Esse universo dos camelôs nos permite aproximar a uma questão crucial de nossa contemporaneidade: as relações estabelecidas a partir dos vínculos de trabalho. Todos temos um ideal de trabalho, inclusive o sonho de não ter que trabalhar. Nesse sentido, os múltiplos de "Dreams Work, Work Dreams" oferecem uma reflexão complexa a partir do percurso cotidiano de trabalho do artista. A obra avança na discussão da insanidade de certas rotinas cotidianas, dos valores de "qualidade de vida" atrelados às atividades laborais. Quantas horas passamos diariamente no trânsito? Como estamos usando nosso tempo? Na mesma estrada convivem "o bom salário", que anacronicamente obriga a percorrer dezenas de quilômetros até o local de trabalho, e os "trocados da sobrevivência" de beira de estrada, mediante a venda de todo tipo de mercadorias, inclusive sexo. As obras são constituídas de fotos digitais (sem qualquer edição ou manipulação) obtidas desde o carro em movimento. Por uma lado, esses registros "indiretos" nos colocam num plano de observação da estrada atípico e profundamente crítico da rotina laboral. Mas, por outro lado, oferecem imagens de uma estética que remete a lógicas de sonho (quando não de pesadelo) e, em conjunto, podem compor uma poética muito singular.
Essa possibilidade de ver o mundo através de "intermediários" é uma das questões que as obras de Davi abordam. Mediante fotos digitais das páginas de livros, propõe-se uma nova leitura da imagem e da palavra associadas numa mesma realidade na qual não mais se pode ler o texto completo nem a tela da qual se fala. Os fragmentos escolhidos fazem um certo ready-made dos livros de arte, que, por sua vez, compõem um novo olhar sobre obras de artistas bem conhecidos (Klimt, Hopper etc). Os múltiplos, em termos gerais, partem de uma re-proposição quase iconoclasta das obras de arte, que, ao mesmo tempo que nos aproximam de trabalhos geograficamente muito distantes, avançam numa outra possibilidade perceptiva de obras célebres pelo "desfocamento" da imagem. Nossas referências de arte ocidental estão construídas por intermediários, seja pelos livros, seja pela internet. Nesse sentido, a instalação discute a hiper-valorização da chamada inclusão digital, a retórica dos discursos de acessibilidade à informação, o crivo midiático permanente que estabelece um distanciamento dos objetos reais: você terá a ilusão de folhear um livro (uma experiência quase lúdica), mas em definitiva você não terá o livro em suas mãos e, muito menos, uma relação cognitiva corpo-a-corpo com a obra.
Desse modo, a essência das obras aqui apresentadas vai ao encontro de uma das grandes características da arte contemporânea: oferecer uma plataforma de referência para compreender a realidade, uma posição desde onde ver o mundo, uma possibilidade de leitura do que nos rodeia.
Alejandra Hernández Muñoz
Arquiteta e Profª. Me. de História da Arte da Escola de Belas Artes da UFBA
Colcha de Retalhos com fios contemporâneos
Os trabalhos de Davi Bernardo e Josemar Antônio apresentados nesta exposição atualizam uma antiga discussão de princípios e, trazem à tona questões da arte que remontam ao final do século XIX, com tudo que o advento da fotografia e da técnica dos pintores impressionistas ajudou a fragilizar. O Desfocamento, princípio que foi gradativamente diluindo contornos, para posteriormente se conectar na produção da imagem artística, desconfigurando o tênue liame que ligava o objeto representado ao objeto suposto como real, até o aparecimento das abstrações como estéticas fundadas nos procedimentos criativos de Wassili Kandinski e Piet Mondrian. Uma outra esfera de questões deriva do princípio da Apropriação, o real através dos objetos, sua captura no cotidiano inaugurada por Marcel Duchamp, desestabilizando para sempre o discurso sobre o que é ou não é arte. Ao longo do século XX, essas questões não se esgotaram, pelo contrário, se intensificaram, pois a fotografia também fortalece o referente, dando-nos a ilusão do real sem sê-lo, e tanto a foto-película como a foto-digital evoluíram em capturas do “real”, tornando-se arte ou fundando, em diálogos múltiplos e estendidos, muitas outras estéticas. A partir do Desfocamento, Josemar se apropria da rua e apresenta-nos sua imagem-impressão onde o referente, poeticamente diluído, aparece como uma pintura. A partir da Apropriação, Davi captura e desloca objetos da feira, dos camelôs, dos livros sobre arte, e com seus deslocamentos e apropriações, nos pergunta de novo o que é ou não é arte. Fios contemporâneos unem o trabalho dos dois artistas e, “antropofagicamente” também revelam, nas fotografias e na forma instalação, acontecimentos das nossas ruas na paisagem local.
Sonia Rangel
Doutora e Professora da Escola de Belas Artes da UFBA
Os trabalhos de Davi Bernardo e Josemar Antônio apresentados nesta exposição atualizam uma antiga discussão de princípios e, trazem à tona questões da arte que remontam ao final do século XIX, com tudo que o advento da fotografia e da técnica dos pintores impressionistas ajudou a fragilizar. O Desfocamento, princípio que foi gradativamente diluindo contornos, para posteriormente se conectar na produção da imagem artística, desconfigurando o tênue liame que ligava o objeto representado ao objeto suposto como real, até o aparecimento das abstrações como estéticas fundadas nos procedimentos criativos de Wassili Kandinski e Piet Mondrian. Uma outra esfera de questões deriva do princípio da Apropriação, o real através dos objetos, sua captura no cotidiano inaugurada por Marcel Duchamp, desestabilizando para sempre o discurso sobre o que é ou não é arte. Ao longo do século XX, essas questões não se esgotaram, pelo contrário, se intensificaram, pois a fotografia também fortalece o referente, dando-nos a ilusão do real sem sê-lo, e tanto a foto-película como a foto-digital evoluíram em capturas do “real”, tornando-se arte ou fundando, em diálogos múltiplos e estendidos, muitas outras estéticas. A partir do Desfocamento, Josemar se apropria da rua e apresenta-nos sua imagem-impressão onde o referente, poeticamente diluído, aparece como uma pintura. A partir da Apropriação, Davi captura e desloca objetos da feira, dos camelôs, dos livros sobre arte, e com seus deslocamentos e apropriações, nos pergunta de novo o que é ou não é arte. Fios contemporâneos unem o trabalho dos dois artistas e, “antropofagicamente” também revelam, nas fotografias e na forma instalação, acontecimentos das nossas ruas na paisagem local.
Sonia Rangel
Doutora e Professora da Escola de Belas Artes da UFBA
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